Há algo de podre nos valores do mundo atual. Elogiamos aqueles que trabalham muito, fazem horas acima do combinado e usam fins de semana para se preocupar com o que ocorre na semana.
O teletrabalho só levou a preocupação para casa. Ao invés do pensamento idealizado de que era possível trabalhar na praia, a realidade é que, mesmo de férias na praia, o trabalho vem a tiracolo.
Não raro, surgem problemas atrelados a este comportamento: estresse, remédios para dormir de noite, estimulantes para não dormir durante o dia, doenças físicas e mentais.
O ser humano original, da época do neandertal, foi feito para liberar adrenalina em casos esparsos: ao caçar a sua comida, para ele mesmo não virar comida, e para fins sexuais. O neandertal não ficava alerta 24h por dia, atormentado infinitamente.
Vem à cabeça a imagem de Íxion, condenado pelos deuses gregos a ficar eternamente girando, preso à uma roda em chamas:
E, por outro lado, estamos num país com 13 milhões de desempregados. Tal número seria muito maior se o índice de desemprego levasse em conta aqueles que desistiram de procurar trabalho formal.
Com o aumento da tecnologia e da produtividade, é possível produzir mais com menos. Com o aumento de produtividade, esperava-se que sobrasse mais tempo para todos, como no antigo desenho dos Jetson, em que o trabalho dele era apertar um botão e ficar olhando.
O tiro saiu pela culatra. Com o aumento da produtividade, aumentou a responsabilidade de quem toma conta do processo. E o efeito foi tirar do mercado quem não acompanhou a mudança.
Ou o fulano trabalha demais ou não tem emprego.
Será possível chegar num meio termo?
O trabalho é uma virtude supervalorizada
Um artigo de 1935, “Elogio ao ócio”, do filósofo e matemático Bertrand Russell, traz um questionamento sobre o tema.
Suponha uma fábrica de alfinetes, que tinha 8 funcionários full-time. Digamos que o aumento de produtividade faz com que sejam necessário apenas 4 para fazer o mesmo serviço. Ao invés de os 8 funcionários trabalharem meio-período, o que acontece é que 4 trabalham full-time, e 4 ficam fora da indústria de alfinetes. Esta é a “Moralidade do estado escravo”.
Russell aponta que o lazer é essencial para a civilização. Em tempos antigos o lazer de poucos era possível devido ao trabalho de muitos. Mas o labor era valioso, não porque trabalhar é bom, mas porque o lazer é bom.
Deveríamos aprender a aceitar um lugar para o prazer em nossas vidas, o que somente é possível com tempo livre. E deveríamos gastar mais tempo em educação, num sentido geral: utilizar o tempo de forma construtiva.
Historicamente, a pequena classe que tinha tempo ocioso desfrutou de vantagens injustas, entretanto esta pequena classe contribuiu com quase tudo o que chamamos de civilização. Ela cultivou a arte e as ciências, escreveu livros, inventou as filosofias, e refinou as relações sociais.
Hoje em dia as universidades são supostamente responsáveis por produzir, de forma mais sistemática, o que a classe ociosa produzia por acidente e sub-produto. Mas as universidades têm vários problemas. Da sua torre de marfim, não estão cientes das preocupações e problemas do homem comum.
Acima de tudo, haverá felicidade e desfrutar da vida, ao invés de nervos destroçados, cansaço e indigestão. O trabalho será suficiente para fazer o lazer agradável, mas não o suficiente para causar exaustão. Uma pequena porcentagem usará este tempo para perseguir temas de interesse pessoal, e produzir trabalhos de importância pública. E isto fará as pessoas mais ternas e menos atormentadas. A vida boa é resultado de facilidade e segurança, não de esforço árduo.
Deveria ser moralmente elogiável permitir que as pessoas trabalhassem 20 horas por dia, o suficiente para obter uma renda satisfatória.
O nativo preguiçoso
Este situação lembra a piada do Dr Livingstone e o nativo preguiçoso na rede.
O Dr. Livingstone, famoso explorador da África, uma vez encontrou um homem deitado numa rede, em pleno dia. Ele perguntou:
– Você não deveria estar trabalhando?
– Mas para que trabalhar?
– Para juntar dinheiro
– E para que dinheiro?
– Com dinheiro você pode comprar uma boa casa
– E para que uma casa?
– Você pode montar uma rede e descansar tranquilamente na sua casa, quando estiver de férias
– Mas já estou numa rede, descansando na minha casa!
Comentário
É impressionante que o texto de 100 anos atrás de Russell continue tão atual.
Mais ou menos na mesma linha, há o livro “Ócio criativo”, do pensador italiano contemporâneo Domenico de Masi. Certamente é um livro mais citado pelo título do que lido de verdade, porque é denso e prolixo.
Certamente, ambos os trabalhos são mais ideais teóricos do que formas práticas de colocar tais ideias em ação.
Na minha opinião, a própria natureza humana não permite que trabalhemos menos; entre dois funcionários, um que quer trabalhar 4h e outro que quer trabalhar 8h, a escolha óbvia do empregador é o segundo. Por outro lado, se é possível que eu trabalhe 20h por semana por metade do salário, ou 40h com o dobro do salário, certamente a minha escolha é a segunda.
A conclusão é de que o texto de Russell vai continuar atual por mais 100 anos. Vamos continuar neste ciclo de poucos trabalharem cada vez mais, seja no escritório ou fora dele, e outros tantos ficarem de fora deste processo. É da natureza humana buscar o máximo para si mesmo… até o ponto em que isto ficará insustentável. Alguma coisa continua errada.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca” – Hamlet, de William Shakespeare.
“Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio”“É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca”
João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina
Notas
O exemplo da fábrica de alfinetes é uma clara referência ao trabalho clássico de Adam Smith, “A riqueza das nações”, em que ele usa uma fábrica de alfinetes para exemplificar o ganho de produtividade devido à separação do trabalho.
Texto completo, In praise of idleness:
http://www.zpub.com/notes/idle.html