O futebol não vive sem uma boa polêmica, não?
Quem estará correto, o desonesto, trapaceiro e espertalhão jogador Jô, que deliberadamente meteu a mão na bola para fazer o gol, ou o bonzinho, honesto e otário jogador Rodrigo Caio, que num lance em que o adversário foi punido (por ironia do destino, o próprio Jô), assumiu a sua culpa e livrou um cartão amarelo para o espertão?
Levar vantagem sobre um erro ou não?
Esta discussão é antiga, e envolve algumas das maiores cabeças da história, numa discussão infindável sobre valores morais.
Nicolau Maquiavel
O gol de mão deliberado de Jô lembra uma frase antiga: “Os fins justificam os meios”. A autoria desta frase é atribuída ao pensador italiano Nicolau Maquiavel, 1469 – 1527. Ele escreveu o livro “O Príncipe”, inspirado na família Médici – poderosos nobres da época – e em outros personagens históricos.
É possível que ele não seja o autor literal da frase “Os fins justificam os meios”, mas esta se encaixa muito bem em sua proposta. “O Príncipe” é como se fosse um manual para que um príncipe se mantenha no poder. O livro contém dicas como “seja benevolente, caridoso, religioso”. Contudo, o governante não precisava sê-lo de fato, apenas nas aparências, pois precisava do apoio da população.
Ele também diz que para o governante é muito mais seguro ser temido do que amado. Outra frase é a de não tentar vencer pela força, quando é possível vencer pela astúcia.
Por essas e outras, o termo “maquiavélico” se traduz em: que envolve perfídia, falsidade; doloso, pérfido.
Mas, antes de tacar pedras, lembre-se de que todos têm o lado Maquiavel. É o lado pragmático, de atingir um objetivo mesmo descumprindo algumas regras.
Maquiavel coloca ênfase total no resultado, e zero ênfase na causa que gerou o resultado. Ele é bastante prático, e aplaudiria o gol de mão de Jô.
Imaginemos outro dilema moral. Se eu voltasse no tempo e estivesse diante de Hitler nenê, eu daria veneno para ele? Por um lado, tirar Hitler do mapa ajudaria a evitar a Segunda Guerra Mundial, que devastou a Europa inteira e tirou a vida de milhões de pessoas. Por outro lado, eu estaria cometendo assassinato.
A resposta de Maquiavel seria bem simples. Acabe com o Hitler nenê. Salve o mundo. E durma tranquilo.
Immanuel Kant
O pensador mais Rodrigo Caio de todos é o grande filósofo alemão Immanuel Kant, 1724 – 1804. Ele tentou criar uma fundamentação moral perfeita, que constrastasse com a antiga moral grega e a moral da igreja católica.
Kant criou um sistema moral que olha para as causas, e não para as consequências. Se eu me mantive fiel aos princípios ao executar a ação, fiz um bom ato. Rodrigo Caio tem um princípio de ser honesto e falar a verdade, então ele se denunciou.
O primeiro imperativo moral de Kant é uma espécie de Regra de Ouro, porém bem mais complicada: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.” É mais ou menos assim. A regra de ouro “faça aos outros apenas o que faria a si mesmo” é bem legal, mas tem defeitos – digamos, um sadomasoquista pode causar dor nos outros porque também gostaria de sentir dor. Então Kant criou uma regra de ouro estendida: ao invés de envolver duas pessoas, envolveria todas, assim consertando a regra.
Uma derivação do conceito de Kant é a de que não devemos usar pessoas como um meio, apenas como um fim em si.
O que aconteceria no caso de Hitler nenê? Kant diria que não devemos assassinar o Hitler nenê, porque assassinato é ruim. Entretanto, causar a Segunda Guerra não é um ato pior ainda?
E se um ladrão entrasse em casa, e a vida da minha família dependesse de uma mentira, o que faria Kant? Manteria-se fiel ao princípio de não mentir e condenaria a família? O próprio Kant deu a sua resposta, quando perguntado sobre um dilema semelhante: contaria a verdade ao ladrão e condenaria a família, mantendo-se fiel ao seu princípio moral de ser honesto.
Nota-se claramente que a filosofia de Kant pode ser interessante para o Sr. Spock, o alienígena perfeitamente racional da série Star Trekk. Mas não reflete o comportamento do ser humano, que no final das contas é um hipócrita: fala como Kant, age como Maquiavel.
John Stuart Mill
Uma última linha de raciocínio: o Utilitarismo do pensador inglês John Stuart Mill, 1806 – 1873.
O utilitarismos também olha para os resultados, como Maquiavel. Mas, ao invés de considerar o resultado para si mesmo, como no caso do Príncipe, considera o resultado para a humanidade inteira. É como fazer uma conta aritmética. Se a quantidade de pessoas felizes foi maior do que a quantidade de pessoas infelizes, o ato é bom.
No caso de Hitler nenê, como isto traria a felicidade de milhões de pessoas a mais, é um bom ato.
No caso de Jô, depende. Como ele joga no Corinthians, e este tem mais torcida do que o adversário, foi um bom ato o gol de mão. Se ele jogasse num time pequeno contra o Corinthians, seria um ato ruim, porque mais gente ficaria infeliz (coincidentemente, a Rede Globo e grande parte dos juízes também pensam assim, rs).
Sempre achei o Utilitarismo muito esquisito. Como mensurar algo abstrato como a felicidade, e tomar uma decisão baseada numa conta de maior ou menor? Entretanto, há muitas decisões que o ser humano toma, que são fortemente utilitaristas.
Se há uma vacina para uma doença terrível, digamos um Ebola de nível mundial, mas essa vacina cura 60% das pessoas e mata 40%? Mill diria para mandar ver, aplicar a vacina. Para Maquiavel, depende dos objetivos do Príncipe liberar ou não a vacina. Para Kant, não é moral liberar a mesma.
Mas e se for uma vacina que cura 99,999% das pessoas, e pode afetar 0,001%?
E se curar 99,99999% das pessoas?
O grau de utilidade pode afetar a decisão.
Para fechar o tópico, um livro bem interessante é de Dan Ariely, sobre desonestidade.
Em resumo, diz que todos nós somos desonestos. Alguns mais, outros menos. A grande maioria é só um pouquinho desonesta, um pouquinho suficiente para levar alguma vantagem (digamos embolsar 1 real do troco que veio errado), mas não tão grande a ponto de perturbar o sono (digamos, se veio 100 reais a mais no troco, devolvemos).
Conclusão
A conclusão é que escrevi um texto enorme para dizer que não há conclusão absoluta. O legal de filosofia é que para cada argumento, há um argumento diametralmente oposto, mas igualmente válido. Ou seja, é da consciência de cada um decidir o seu lado Jô, o seu lado Rodrigo Caio. Ou melhor, o seu lado Maquiavel, o seu lado Kant, ou o seu lado Stuart Mill.
Mas, na prática, eu não compraria um carro usado do jogador Jô.