Hércules era um dos cavalos que trabalhavam na fazenda Mundo.
A fazenda estava sob nova direção. Durante vários anos, os Touros tinham o seu controle. Mas, devido a alguns anos de baixa produtividade, os acionistas contrataram uma empresa de consultoria, a Raposa Gestão de Negócios. Esta fez um power point identificando excesso de pessoal, salários acima do mercado, falta de metas e falta de processos.
Diante do potencial de ganho imediato de mais de 20% prometido pelo power point, os acionistas compuseram uma nova diretoria, composta inteiramente pelos Lobos. Os Lobos tinham feito os melhores MBA e trabalhado muito próximos ao mercado financeiro. Nada conheciam de plantar ou colher. Eles diziam que não precisavam saber de operar o negócio, mas sim analisar os números que este gerava.
Já no primeiro dia da nova gestão, eles demitiram 40% dos funcionários, extinguiram algumas seções supérfluas como o atendimento a cliente, e mudaram totalmente o sistema de gestão: a gestão pelo chicote.
Foi no novo sistema de gestão pelo chicote, que Hércules sentiu mais. Os novos diretores eram extremamente agressivos, e toda a gestão abaixo seguia a mesma linha.
Os novos supervisores da fazenda eram Porcos. De agora em diante, eles tinham dois instrumentos a serem utilizados: a cenoura e o chicote.
Com eles, era “sangue nos olhos” e “faca nos dentes”. Metas agressivas a serem batidas, mês após mês. Aos poucos que se destacavam, o prêmio: as cenouras. Hércules gostava bastante de cenouras. Receber cenouras era viciante. Um mês com cenouras, e ninguém mais queria comer alfafa, que era seca e sem gosto. Até os filhos de Hércules começavam a pedir cenouras todos os dias.
Aos muitos que ficavam abaixo das metas, o chicote. Algumas ofensas verbais, “palerma”, “retardado”, “fracote”, “brochado”, descendo ao nível de palavrões muito mais pesados. Broncas em público, torturas verbais. Aos 10% piores funcionários do mês, a humilhação total. Estes tinham que passar por um “trote”, que variava todos os meses: ser alvejado por ovos, ficar um dia vestido de galinha, ajoelhar-se e fazer reverências para todos os que encontrassem na fazenda… Quem não fizesse isso, era despedido. Às vezes, os coitados eram despedidos mesmo passando pelo trote.
Hércules viu um amigo, o Sansão, passando por um desses trotes. Ele não tinha conseguido cumprir a meta de área de terra arada. Sansão passou o dia se arrastando na lama, e no fim da tarde foi demitido assim mesmo. Hércules não queria passar pelo mesma humilhação, e passou a trabalhar mais horas por dia, com mais afinco, a fim de cumprir as metas estabelecidas e levar as cenouras para casa.
Os resultados foram aparecendo para a Fazenda. Mais produção, com menos mão-de-obra. Menor custos, porque as cenouras eram muito mais escassas do que o chicote. Diretores Lobos aparecendo em capas de revistas de negócios, e acionistas felizes.
Mas, na linha de produção, Hércules viu coisas assustadoras. Um dos supervisores porcos, a fim de cumprir a meta da semana (agora era semanal), roubou uma fatia da produção de outro supervisor, sendo este último humilhado e demitido a seguir. Ele continuou a fazer o mesmo todas as vezes em que não conseguia atingir a meta, até que um dia ele sofreu do mesmo veneno: roubaram a sua produção, e ele caiu em desgraça.
Tinha outro supervisor que não queria parar para realizar manutenção preventiva nos equipamentos. Parar significava perder uns 10% de produção da semana, o que era inaceitável para alguém que sempre tinha batido metas. Ele passou vários meses discursando que as ferramentas não precisavam de manutenção. Até que um dia, um dos carrinhos que levava a produção tombou, matando dois burros, duas galinha e um gato. Mas tudo bem, diziam os Lobos, eram só animais mesmo.
A qualidade também caiu bastante. Como a produção era medida por peso, os supervisores passaram a colocar junto pedaços que antes jogavam fora, como casca, galho, terra. O controle de qualidade de vez em quando barrava algum lote, e quando isto acontecia, aconteciam brigas homéricas, a ponto de chegar às vias de fato. Afinal, um lote barrado significava ficar entre os 10% piores. E, muitas vezes, a direção também fazia vista grossa à qualidade, já que o consumidor final não sabe diferenciar mesmo um produto top de outro mais ou menos.
O pior de tudo era a visão míope em relação ao futuro, meio-ambiente e comunidades. Por exemplo, eles usavam o terreno até a exaustão, e não tomavam medida alguma para preservar o mesmo após a colheita (porque custa dinheiro e não gera produção). Resultado: erosão, que não vai gerar efeitos imediatos, mas alguém vai sofrer com isto daqui a uns 10 anos.
Entretanto, Hércules não estava muito preocupado com tudo isso. Se os diretores tinham MBA, era porque sabiam o que estavam fazendo. A ele, só cabia fazer o seu trabalho e cumprir as metas. Contudo, mês após mês, as metas foram ficando mais e mais difíceis. Se ele produzia 100, no mês seguinte pediam 110, depois 120, 130. Afinal, se a régua não subisse, qual seria o propósito de ter metas desafiadoras? Hércules passou a trabalhar até tarde da noite, e em fins de semana. Férias ou feriados, só se fosse para adiantar um pouco das metas do período seguinte. Não tinha tempo de pensar, de cuidar dos filhos ou de si mesmo.
Enfim, no mesmo mês em o diretor geral da fazenda foi capa da revista “Tubarões S.A.”, Hércules bateu o seu recorde pessoal de produção e sofreu um ataque cardíaco fulminante, caindo duro, sem tempo nem de se despedir de seus entes queridos. “Imprevistos acontecem”, comentou o seu supervisor, lamentando a falta que Hércules vai fazer para ele cumprir a cota da semana.