Ir até a República Popular da China e vivenciar o cotidiano é completamente diferente de acompanhar pelos jornais. Seguem 10 tópicos para ajudar a entender o Império do Centro.
1. Os EUA são os designers do mundo, a China é a fábrica do mundo, o Brasil é o celeiro do mundo?
2. Mão de obra numerosa e miserável?
3. Produtos xing ling de baixa qualidade?
4. Poluição e respeito ao meio-ambiente
5. Estado e Liberdade
6. Desaceleração da economia e Dívida pública
7. Educação e criatividade
8. Superpopulação e filho único
9. Harmonia e mandato dos céus
10. Sobre Guanxi e perder a face
Bônus: Escolha sua lagosta viva no supermercado!
Há muitos mitos sobre a China. De certa forma, os mitos são verdadeiros. O que acontece é que a China muda com velocidade impressionante. Eles são extremamente agressivos em suas ações e na perseguição de metas. Um livro sobre a China escrito há 10 anos já não é válido. E este post também tem validade limitada, no máximo alguns meses.
Primeiro, vide nota sobre as fontes utilizadas*.
1. Os EUA são os designers do mundo, a China é a fábrica do mundo, o Brasil é o celeiro do mundo?
Já foi verdade. Entretanto, desde a crise mundial de 2008 a China fez uma mudança de rumos, e passou a trabalhar fortemente em serviços.
Há pesquisa e desenvolvimento forte em Big Data, Inteligência Artificial, Carros Autônomos, Internet das Coisas, Indústria 4.0. Tudo o que os EUA buscam como provedores de serviços de inovação, a China está fortemente engajada também.
E o investimento é extremamente pesado. Uma startup brasileira que lida com Inteligência Artificial tem uns 20 funcionários. Na China, visitamos uma empresa de reconhecimento de vídeos que tem mais de 6000 pessoas trabalhando em pesquisa e desenvolvimento!
A China contrata os especialistas mais badalados do mundo. Eles também não hesitam em comprar empresas promissoras, despejando um caminhão de dinheiro para atrair mentes e produzir em escala. A ordem de grandeza de tudo na China é absurdamente grande!
Esqueça o Google e a Microsoft. Os próximos líderes serão chineses como Tencent e AliBaba.
Outro ponto é que o governo investe muito em infraestrutura e logística, de modo que tais barreiras são muito menores do que num país como o nosso Brasil…
Existe até um plano para isto tudo. É o Made in China 2025, um dos motivos pelos quais os EUA iniciaram a recente guerra comercial. Uma coisa é ter um alguém fabricando os seus produtos, outra coisa é ter um concorrente do mesmo porte intelectual. A Apple tem os seus produtos manufaturados na China, o que não a prejudicou em ter valor de mercado de 1 trilhão de dólares – mas imagine o estrago de uma Huawei com qualidade e capacidade de inovação superior à Apple!
Acostume-se a ver a China como provedor de serviços, batendo de frente com os EUA. E o Brasil? Continua sendo fornecedor de commodities, o celeiro do mundo.
2. Mão de obra numerosa e miserável?
A China já teve mão de obra miserável. A “armadilha da classe média” já chegou, cidades como Beijing e Shanghai têm muita gente na classe média. O salário mínimo dessas cidades chega a 5000 yuans, o que equivale a uns 3 mil reais – é num nível bastante superior ao brasileiro.
O aluguel de um apartamento em Shanghai é mais caro do que em São Paulo.

Esse pessoal já não quer se sujeitar às mesmas condições de seus pais em trabalhos perigosos, mal remunerados e jornadas longas.
A classe média alta emergente gosta muito de produtos de luxo. Não faltam carros importados caros. Shoppings, apenas marcas top. Filas de pessoas para comprar relógio Cartier.

Os chineses seguem à risca a seguinte frase de Deng Xiaoping (que iniciou as reformas no anos 1980):
Pobreza não é socialismo. Ser rico é glorioso.
3. Produtos xing ling de baixa qualidade?
Fui à China achando que encontraria ruas semelhantes à uma 25 de março em SP (ou o Saara no RJ), cheia de camelôs vendendo tranqueiras inúteis e mal produzidas. O que encontrei foram ruas e ruas semelhantes à 5a Avenida de New York, com marcas internacionais extremamente caras, caras demais para mim.
A China está passando exatamente pelas mesmas fases do Japão: primeiro copiar, depois aprender, para enfim produzir o seu próprio trabalho.
A China está velozmente apagando essa imagem de produtos de segunda mão. Esses fake markets foram muito reduzidos (tanto é que não deu tempo de eu visitar nenhum).
As empresas em geral ainda não chegaram num nível de qualidade alto, mas dentro de poucos anos, marcas chinesas fortes e extremamente qualificadas concorrerão de frente com seus pares americanos.

4. Poluição e respeito ao meio-ambiente
A China já foi um dos lugares mais poluídos do mundo. Há diversos relatos de céu com nuvens pretas, principalmente quando algum outro fenômeno meteorológico como tempestade de areia ocorre também.
É comum ter aulas canceladas por causa da poluição, assim como esportes cancelados.
Atualmente, a China está lutando fortemente para fazer com que a poluição diminua. E isto não é por acaso. Conforme tópico anterior, o padrão de vida da população aumentou, e com isso, suas exigências, seguindo claramente uma pirâmide de Maslow.
Para ter uma ideia, os chineses sempre consultam o serviço de poluição do ar antes de sair de casa (http://aqicn.org/city/beijing/).

Acima de 100 é ruim. São Paulo nos piores dias, chega a uns 80. Beijing sempre está acima de 100, e já foi pior ainda, chegando a mais de 500 num passado recente, segundo relatos.

A China é quem mais investe no mundo em energias limpas, como eólica e solar. Motivos: pelo fator poluição e para diminuir a dependência chinesa de importação de combustíveis fósseis.
A lógica foi primeiro sair da miséria, depois começar e pensar nos impactos ambientais de médio e longo prazo, dentro do conceito de Harmonia chinesa.

Portanto, a poluição ainda não está em níveis bons, mas a preocupação com o meio-ambiente vem ganhando força, por necessidade de harmonizar produção com suas consequências.
5. Estado e Liberdade
O Estado está claramente presente em todo lugar.
As empresas são privadas, entretanto, com uma mão forte do Estado por trás.
A política de campeões nacionais, que deu tão errado no Brasil, é visível e extremamente pesada por aqui. É o mesmo modelo de Capitalismo de Estado do Japão pós-guerra, que por um lado pode desperdiçar uma montanha de recursos, mas por outro, fortalece sobremaneira o escolhido. É um misto esquisito. Uma empresa que começou em 2012 com capital de 4 mil dólares hoje vale 40 bilhões de dólares, por exemplo.
O Estado está na vida de todos:
– Uma cidade como Beijing é totalmente zoneada: blocos residenciais imensos, blocos de escritórios.
– Todo metrô tem um ponto de inspeção, raio X.

– Pontos turísticos (Cidade Proibida, Tianamen – praça da paz celestial) têm um ponto de checagem de identidade ou passaporte, para estrangeiros.
– Controle dos meios de comunicação. O Google não funciona na China. Nem o Whatsapp, Youtube, que têm relação com o Google. O Facebook também não funciona, Amazon idem. Como regra geral, os grandes do ocidente não entram na China facilmente.
Isto tem dois motivos.
– Proteger as empresas chinesas, que têm um equivalente a cada um desses serviços: Baidu no lugar do Google, WeChat no lugar do Whatsapp, Youku no lugar do Youtube, AliBaba no lugar da Amazon, QQ no lugar do Facebook e assim por diante.
– Facilitar o controle estatal. O WeChat, por exemplo, é monitorado. Comentar sobre uma palavra chave controversa (os três Ts: Taiwan, Tibet e Tianamen) é pedir problemas.
Empresas grandes são “too big to fail”, o Estado não vai deixar quebrar.
Portanto, tenha em mente que não se faz negócios sem envolver o Estado.
6. Desaceleração da economia e Dívida pública
A Economia Chinesa é bastante individada e isto pode causar problemas, quando tais dívidas tornarem-se impagáveis. Pelo tópico anterior, as empresas privadas são também do Estado, os bancos são do Estado, e há muita poupança interna, então boa parte do calote seria para com o próprio povo chinês, o sofrido povo chinês.
Outro ponto importante é a desaceleração da Economia. Se esta crescia 10% ao ano, e vai passar a 7%, depois a 5%, isto significa que a produção de aço vai cair pela metade, que metade das super siderúrgicas que funcionavam na exuberância vão parar de funcionar, e com, isso, desemprego.
Em dois anos, a China consumiu mais cimento do que em 100 anos dos EUA.
Essas duas imagens resumem o frenesi construtivo dos chineses.


Fonte: https://www.theatlantic.com/photo/2013/08/26-years-of-growth-shanghai-then-and-now/100569/
O que fazer com tal capacidade ociosa?
Resposta: que tal construir estradas gigantes e portos colossais, para ligar a China a países asiáticos e africanos? É o mega-mega-megalomaníaco plano Belt and Road.
São questões difíceis, não dá para prever a resposta. Para o bem do mundo, espero que haja um soft landing.
7. Educação e criatividade
Um dos pilares do confucionismo é a educação. A educação tem uma importância fundamental em países como a China e o Japão.
No Brasil, esperto é aquele que não estuda e passa no final, dá um jeitinho. Esquisito é o cdf que presta atenção nas aulas.
Nestes países, é o contrário. O objetivo dos alunos é tirar nota 10 em tudo e estudar insanamente para tal. Não há vergonha em ser cdf, a vergonha é passar com notas baixas.
Tem como o brasileiro competir com um pessoal desses?
Talvez. Há um ponto fraco, um calcanhar de Aquiles. Na China, a educação tende a ser com base no decoreba: decorar ipsis litteris as respostas corretas. Conta um dos contatos, que a filha dele tira 7 na escola, e os colegas, 9.5. Mas conversar com eles é como conversar com alguém de QI 50 – apenas se esforçam em decorar o correto, sem capacidade de pensar além disto, como robozinhos.
Nas empresas, o reflexo. Diz um outro contato que tudo deve ser micro-gerenciado nos mínimos detalhes. Deve-se pedir tudo bem especificado, senão eles não conseguem fazer, ou no máximo vão copiar exatamente igual algo já existente.


A China vai mudar isto também, porém, vai demorar muito tempo, o tempo de formação de pessoas. A criatividade é uma vantagem competitiva do ocidente – por enquanto.
8. Superpopulação e filho único
Na China, tudo é gigantesco. Visitei as cidades de Beijing (20 milhões de habitantes), Shanghai (também uns 20 milhões de habitantes) e Hangzhou (uns 10 milhões).
No transporte público, dezenas de milhares de pessoas se espremem nos trens. Nas atrações turísticas, como a Cidade Proibida, também, dezenas de milhares de pessoas.
A foto a seguir foi tirada em Hangzhou. Imagine um prédio imenso, residencial, de uns 30 andares de altura. Agora, imagine uma centena de prédios idêntico a este sendo construídos ao mesmo tempo. É o que esta foto tenta mostrar.
O Ano Novo Chinês, que ocorre em meados de fevereiro, é a maior movimentação humana do mundo. Por hábito, as pessoas voltam para a casa dos pais, o que implica em um bilhão de pessoas viajando em 5 dias.

Uma norma cultural extremamente chocante: é permitido furar fila, empurrar, falar alto. Nem todos fazem isto, é claro, mas há uma porcentagem expressiva que fura a fila, na cara de pau. Empurrões no meio da multidão também são comuns. E eles brigam muito entre si, falando alto e xingando-se. Quando retornei ao Brasil, eu mesmo me vi empurrando os outros no metrô.
A superpopulação fez com que o governo decretasse a política do filho único. Porém, como num navio gigante, corrigir os rumos pode fazer o navio ir demais para o outro lado, tamanha a inércia deste.
Devido à política do filho único, a China é o país que vai envelhecer mais rapidamente na história da humanidade, com consequências incalculáveis em termos de aposentadoria e bem-estar social.
https://www.populationpyramid.net/china/2017/
Atualmente, há centenas de milhares de jovens com dois pais, e quatro avós. Preocupa, porque este 1 ser humano terá que prover recursos para sustentar os outros 6 seres humanos. Outra coisa, sendo a primeira geração rica da história, esses jovens vão herdar tudo o que os seis ancestrais têm: apartamento, carro. Ou seja, tende a ser uma geração de pessoas mimadas.
Se vão continuar mimados quando entrarem efetivamente no mercado, não se sabe, não dá para prever.
A China abriu mão desta política do filho único, e espera-se que em algum momento, haja um equilíbrio entre jovens e idosos, e homens e mulheres.
9. Harmonia e mandato dos céus
A Harmonia é uma palavra muito importante para entender a China.
A China sempre foi um Império, com um imperador mandando em tudo. Para justificar o seu poder, criaram há milênios atrás o conceito de “mandato dos céus”.
O imperador recebe dos céus os poderes para conduzir a nação. E o imperador, na teoria, é um servo de todas as pessoas, ele é quem mais deve trabalhar para garantir o bem-estar e harmonia de todos (pelo menos na teoria), como a abelha rainha da colméia.
O imperador perde o mandato dos céus quando falta comida, as revoltas se acentuam, há descontentamento geral de todos, ou quando ele é destronado por outro competidor.
Por harmonia entende-se emprego para todo este povo, condições mínimas de viver, comida e felicidade.
São muito pragmáticos. A política econômica monetária não importa, o que importa é a realidade, o dinheiro na conta no final do mês. Ninguém sabe quem é o presidente do banco central, nem quem é o ministro da Economia. Enquanto perdemos tempo discutindo as peripécias de Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e cia, os chineses estão trabalhando. Não interessa saber quem são as pessoas, o que interessa é que as instituições funcionem, e estão muito certos neste ponto.
10. Sobre Guanxi e perder a face
A regra default de relacionamento é a princípio desconfiar. Para criar confiança, os chineses passam longos períodos conhecendo as pessoas com quem vão negociar. Leis escritas não interessam tanto quanto a norma social. Para criar este vínculo, são comuns jantares e muito álcool.
Esta rede de relacionamentos é importante em qualquer lugar do mundo, mas na China é um pouco mais profundo. É ser mais que um conhecido, é ser quase um amigo.
Por outro lado, é comum as pessoas comprarem produtos da China que vêm errados. O ocidental tem a “culpa cristã”, que é muito mais fraca por ali.
Um caso. Um conteiner com produtos defeituosos. O brasileiro reclamou, ameaçou não pagar. O chinês ficou bastante tempo negociando, e disse até que os filhos morreriam de fome caso ele não pagasse pela carga. O brasileiro consultou um especialistas nas relações chinesas, que disse que era normal eles apelarem baixo assim para conseguir o pagamento da carga.
É paradoxal, investir horas num guanxi de relacionamento, mas ser permitido mandar produtos ruins para os outros. É paradoxal como tudo mais neste Império.
Por fim, o conceito de perder a face. É o conceito da vergonha. Vergonha de ter feito algo errado e prejudicado o país (não é prejudicar a si mesmo, ou a empresa, é envergonhar o país). Digamos, roubar algo é vergonhoso. Ou perder um processo judicial por conta do problema de conteiner acima e ficar caracterizado que houve uma trapaça. Deve-se tomar cuidado para não fazer um chinês perder a face, é pesado para ele, é quase a vida dele.
Conclusão
A China sempre foi uma potência mundial, e está retornando ao seu lugar. O projeto da vez é o plano Road and Belt, que busca construir uma infraestrutura gigantesca de rodovias e portos, ligando a África e a Ásia inteiras à China.
O Brasil tem que aprender a operar num mundo cada vez mais centrado no Império chinês, sob o risco de ficar mais para trás do que já está. Enquanto o Brasil está caminhando devagar quase parando, a China está 10 km à frente correndo alucinadamente – estudam mais, trabalham mais, brigam mais e são mais numerosos.
Os tópicos apresentados são apenas o início, nem arranham o entendimento deste gigante.
Napoleão Bonaparte: A China é um gigante adormecido. Deixe este dormir, pois quando acordar, o mundo tremerá!
*Sobre fontes utilizadas. A China divulga pouquíssimos dados oficiais. As informações aqui descritas foram com base em conversas com pessoas, portanto, não são totalmente confiáveis.
Bônus: Visitei um supermercado, o Henan, em que há vários aquários com criaturas vivas. É só escolher, que o atendente pega e te entrega.