O velhinho ranzinza já foi descrito anteriormente neste espaço. É um senhor na faixa dos 80 anos, que vive sozinho. Não casou, nem tem filhos, nem parentes nem amigos próximos.
Hoje é véspera de Natal.
O dia começou como todos os outros: tomou café, caminhou um pouco, reclamou dos políticos. Sua caminhada é difícil. Ele tem artrite, precisa de uma bengala, e todos os seus movimentos demoram, demoram m u i t o.
Por ser um dia comemorativo, ele decidiu ir ao mercado comprar insumos para uma ceia especial. Escolheu um tender congelado, batatas para acompanhar e um molho especial feito à base de cebolas. Um vinho tinto chileno, para fechar o pacote.
Passou o resto do dia preparando a sua ceia especial. Caprichou no molho, experimentou as batatas. Respirou fundo o aroma da carne salpicada com o molho…
Chegando umas 7 da noite, achou um desperdício fazer a ceia e não dividir com ninguém. Pensou em quem poderia ligar. Não era casado, nem tinha filhos. Também não tinha irmãos. Um primo morava em Minas, e alguns outros, no Rio Grande do Sul. Parece que uma sobrinha morava em São Paulo, mas ele nem sabia o nome dela. Pensou em alguém do trabalho. Já tinha se aposentado há uns 15 anos, e perdido contato. Alguns conhecidos já tinham falecido ou estavam tão inválidos quanto ele próprio. Não conseguia ter atividades sociais atualmente, devido à sua incapacidade física.
O único contato maior era com o zelador do prédio, os porteiros e as faxineiras. Mas o contato com os porteiros era mais para ralhar com o desempenho deles do que para conversar. Além disso, eles tinham família, não iriam passar o Natal com um velho inválido, um porco-espinho que os espeta mas que no fundo tem cerne mole.
Ele teve um ataque cardíaco há uns 10 anos. Ficou um mês no hospital e foi salvo pela medicina moderna. Ele refletiu, se não tivesse sido pelos médicos, não poderia desfrutar da ceia de hoje…
No momento seguinte, o velhinho ranzinza deixou os devaneios de lado e foi ver a carne, que estava queimando.
Todos os preparativos feitos, era só esperar. Tomou um banho, vestiu a sua melhor roupa, e ficou à frente da televisão para matar o tempo, onde viu, como em todos os anos, uma dramatização de “Um conto de Natal”, de Charles Dickens: aquela história do avarento que recebe a visita dos espíritos do passado, presente e futuro.
Chegando a hora, ele deliciou-se com o banquete. Comeu o mais devagar possível, para desfrutar do momento.
Brindou com o vinho, ao Natal, à Vida e à Felicidade!
Um Feliz Natal para todos!
Terminada a janta, foi dormir. A partir de amanhã, tudo voltará à rotina, ao normal. Poderá voltar a atazanar a vida dos porteiros, cobrar performance das faxineiras do prédio, ir ao mercado, preparar a sua refeição e reclamar dos políticos. E dormiu o sono dos justos…
Posfácio: No Japão atual, vem ocorrendo um fenômeno chamado Kodokushi. Com o aumento da longevidade das pessoas e a diminuição do número de casamentos e filhos, há uma porcentagem cada vez maior de velhinhos solitários e desamparados. O mesmo tende a ocorrer em outras sociedades, em níveis cada vez maiores, inclusive no Brasil.