Estou vendo uma série na Netflix, chamada “Golden Kamuy”. É baseada num mangá japonês. Algo interessante é que os personagens principais são um japonês imortal e uma garota ainu.

Mas que são os ainu?

São um povo ancestral do Japão, que estavam lá antes dos japoneses atuais…

Ué, mas o Japão não é habitado pelos japoneses? Não.

Senta que lá vem história…

As raízes do Japão

Um artigo de Jared Diamond, “In Search of Japanese Roots”, ajuda a lançar luz sobre a origem do povo japonês e suas conexões com os povos vizinhos.

Existe uma rivalidade imensa entre o Japão e os seus vizinhos do continente, a notar a Coreia e a China. Embora fisicamente sejam muito parecidos, historicamente o Japão invadiu a Coreia e a China em episódios cruéis e lamentáveis ao longo da história, sendo a ocasião mais recente na Segunda Grande Guerra, o que faz com que muitos coreanos tenham uma péssima imagem dos japoneses até os dias de hoje.

Por outro lado, o povo japonês tem orgulho em se dizer um povo “puro”, com pouca miscigenação e com o imperador vindo de gerações ancestrais inúmeras. Há lendas de sua fundação, com deuses como Izanagi e Izanami. Eles mergulharam a lança nas águas; ao erguê-la, as gotas formaram as ilhas do Japão atual…

Geografia

Falando em ilhas, o Japão é um arquipélago isolado no mar, enquanto a Coreia faz parte do continente asiático, encostada na imensa China.

Entre ambos, há apenas o mar do Japão — e é justamente a Coreia o território mais próximo geograficamente das ilhas japonesas.

Ademais, o Japão tem uma quantidade de precipitação maior do que em outros países da mesma latitude, o que faz com que as suas áreas aráveis (cerca de 14% do território) sejam altamente produtivas.

A ilha mais ao norte do Japão é Hokkaido, e é lá onde se passa o mangá citado, e onde há a maior concentração dos ainus.

O povo Ainu

As evidências arqueológicas sugerem que os habitantes originais do Japão não eram os ancestrais diretos dos japoneses atuais.

Antes deles, havia outro povo: os Ainu.

Os Ainu chegaram há cerca de 10 mil anos, provavelmente atravessando a pé o mar congelado durante uma era glacial, quando o nível das águas era bem mais baixo.

Estabeleceram-se nas ilhas, formando pequenas tribos de caçadores-coletores, sem agricultura, escrita ou cerâmica elaborada.

Fisicamente, os Ainu lembram uma mistura de traços caucasianos e asiáticos: barbas longas, pele clara, e, em alguns casos, olhos azuis. Sua língua não tem qualquer relação com o japonês moderno.

Hoje, alguns poucos Ainu sobrevivem como minoria étnica no norte do Japão, preservando costumes próprios — entre eles, a tatuagem tradicional ao redor da boca feita por mulheres.

Os filhos do Sol

Por volta de 3.000 anos atrás, algo mudou drasticamente.

A arqueologia revela o surgimento de objetos de metal, vasos cerâmicos e evidências de agricultura. Curiosamente, muitos desses artefatos são idênticos aos encontrados na Coreia do mesmo período — vasos, ferramentas, utensílios domésticos e até casas no estilo coreano.

Uma teoria é que o povo japonês trouxe da Coreia tais inovações, porém, o mais provável é que o contrário tenha ocorrido.

A agricultura não surje do nada. Essas transformações não ocorrem de forma espontânea. Tudo indica que um novo povo, vindo provavelmente da Coreia, invadiu e se estabeleceu nas ilhas japonesas, trazendo consigo o domínio da metalurgia e da agricultura — especialmente o cultivo do arroz e do trigo.

Com o tempo, esse povo expandiu-se e empurrou os antigos Ainu para regiões cada vez mais remotas do norte.

Uma coisa legal do anime é que ele resgata um pouco da cultura e lingua dos ainus. “Kamuy” é algo como “ser espiritual”, por exemplo.

A primeira crônica japonesa conhecida, datada de 712 d.C., já mostra um país consolidado sob a cultura, a língua e o DNA dos ancestrais dos japoneses modernos.

A prova genética

Hoje, os estudos de DNA antigo permitem confirmar a história que antes era apenas suspeita arqueológica.

Os esqueletos com mais de 3.000 anos têm perfil genético muito mais próximo dos Ainu do que dos japoneses atuais.

Após esse período, a situação se inverte — os genes predominantes passam a coincidir com os coreanos antigos.

Os japoneses modernos têm, portanto, DNA majoritariamente coreano, com uma fração menor de origem Ainu.

Quanto mais ao norte, maior a herança Ainu; quanto mais ao sul, maior a influência dos povos de Okinawa, que também guardam características distintas.

Há ainda vestígios genéticos de povos indonésios, tibetanos e outros da Ásia continental.

A questão da língua

Mas há um enigma curioso.

Se coreanos e japoneses são tão próximos geneticamente, por que suas línguas são tão diferentes?

A explicação proposta por Diamond é que, há 3.000 anos, a Coreia não era uma nação unificada, mas um mosaico de reinos.

A língua coreana atual descende do reino de Silla, vencedor do processo de unificação coreana.

Outros reinos, entretanto, falavam línguas distintas. É possível que um desses povos derrotados tenha migrado em massa para as ilhas japonesas, levando consigo sua cultura e seu idioma — o ancestral da língua japonesa.

Assim, a origem dos japoneses é o resultado da fusão entre povos — os Ainu nativos e os imigrantes coreanos que chegaram há milênios.

Por isso, chineses, coreanos e japoneses compartilham traços físicos semelhantes, por ancestralidade comum.

Apesar das rivalidades modernas e dos conflitos históricos, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, Coreia e Japão são povos que descendem de uma mesma raiz, irmãos na genética, na história e, em muitos aspectos, na cultura.

Veja também:

Artigo original de Jared Diamond

Escrevi texto semelhante anos atrás, vide https://ideiasesquecidas.com/2015/10/31/os-japoneses-originais/