Castelo encontrou um amigo, num dos bares do Rio de Janeiro. Estava de férias, de volta ao Brasil após um ano no exterior. Estava numa bela situação financeira e não media esforços para ostentá-la: roupas, sapato, relógio da melhor qualidade.
Após algumas cervejas e muito papo furado, o amigo perguntou como ele tinha conseguido chegar onde chegou.
Castelo, todo cheio de si, contou a sua história.
Ele vivia em estado de eterna penúria, fugindo de pensão em pensão, até que um golpe de sorte mudou a sua vida. Num congresso de economia, de última hora um palestrante faltou. Um conhecido dele sabia que ele era um bom contador de histórias, e o chamou para cobrir a vaga. “Nem sei muita coisa de economia, mas vamos lá, pensou”. Deu uma lida na definição de economia e dormiu em cima do livro.
Chegando no palco, ele começou a descrever exatamente a definição que ele tinha decorado. Cinco minutos depois, já não tinha o que falar, e começou a se desesperar. Daí, começou a inventar coisas. Falou que era um profundo conhecedor da experiência econômica na ilha de Java.
Na ilha de Java todo mundo é rico. Todo mundo tem direito a um iphone, mas apenas um, por pessoa.
Eles conseguem isto a partir de uma distribuição justa de renda: os ricos financiam os pobres, de modo que todos têm a mesma renda.
Ele tinha ouvido falar de Keynes, na faculdade, algo como os gastos públicos são bons em épocas de crise. Então, se é bom, que tal se todos os gastos fossem públicos? Para todos os gastos serem públicos, todas as empresas têm que ser públicas e todo o emprego, público. Todos são empregados do estado, que garante a regra da “tigela de ferro” para todos.
A “tigela de barro” é o mundo capitalista. Cada um por si, mercado livre. A “tigela de ferro” é o sistema social da ilha: o governo cuida de todos, previdência garantida, emprego garantido. É claro que há limitações. Se o estado é responsável pela alocação do emprego de todos, possivelmente nem todos teriam a escolha do emprego, é o estado que definiria o melhor papel de cada um, como uma engrenagem numa grande máquina.
E todos eram muito felizes, iguais e bem alimentados.
Sendo todos felizes, eles tinham a melhor educação do mundo. Também a melhor saúde do mundo.
Ninguém comete crimes, se o fizerem, basta uma conversa séria dos sociólogos da ilha para eles voltarem ao normal. Portanto, não há prisões, apenas direitos humanos.
O ouro é utilizado apenas para o comércio com o exterior. Dentro da ilha, todos desprezam o ouro e outros ganhos materiais. Para simbolizar isto, o ouro é utilizado para fazer o vaso sanitário das casas da ilha, literalmente cagam no ouro.
Há cotas para todos os cargos e profissões, representando exatamente a extratificação racial da sociedade.
Na ilha de Java, todos são amigos, e já são dois mil anos de prosperidade.
Fecha aspas.
Com este discurso, Castelo ganhou notoriedade nos jornais ideológicos. Passou a ser celebridade, constantemente convidado a participar de debates, escrever livros e artigos. Sempre repetia a mesma história, do começo ao fim. Quando questionado, era só falar que em Java, funciona.
Ganhou o apoio do ministro da fazenda. Virou celebridade na internet. Ganhou uma coluna numa revista ideológica, onde criticava o capital, a ganância, os empresários. Almoçou com o presidente da República.
Na cara de pau, copiou o símbolo da linguagem Java como símbolo de sua coluna. Java é uma linguagem de programação, cujo nome veio de um café produzido na ilha de Java.
Um dia, a imprensa descobriu um marinheiro que realmente era javanês, e queriam entrevistá-lo. Castelo suou frio, temendo ser desmascarado. Mas, o destino quis que ele continuasse o seu teatro. O tal marinheiro não falava inglês nem qualquer outra língua inteligível. Então, o próprio Castelo foi chamado para ser o tradutor. Ele decorou duas frases no malaio javanês: “Bom dia” e “diga mais sobre você”. E na entrevista inteira, o que ele “traduziu” para o português foi exatamente a mesma história que já fora contada inúmeras vezes.
E assim, de cargo político em cargo político, hoje ele é embaixador brasileiro nas ilhas do Pacífico. Ele é a prova viva de que o paraíso social, em Java, funciona.
Terminaram a conversa com um brinde a todos os brasileiros, a todos os javaneses e a todos os (ingênuos) que acreditaram em sua história.
Referências
O homem que sabia javanês – Lima Barreto
A Utopia – Thomas More